Um amigo começou a namorar há pouco tempo. Um dia, num táxi, quando estávamos voltando pra casa meio bêbados, ele estava me falando d'Ela. Ele me disse: é que ela tem um sorriso muito bonito... Nunca havia a visto, nem em foto, pois ainda era um desses momentos iniciais do amor em que tudo é incerto e obtuso. Quando ele começou a tirar fotos com ela, pude ter certeza: realmente era um sorriso muito lindo.
Achei curioso que, ao descrevê-la pra mim, de todas as características que poderiam ser mencionadas, ele escolheu o sorriso. Não é difícil descrever quem a gente ama, mas é quase impossível exprimir em palavras o porquê de nós a amarmos em detrimento de outras tantas coisas potencialmente amáveis. Escolher a palavra certa, que vá conter o ser amado como um todo… isso é uma verdadeira arte. No dia a dia, tentamos apenas encontrar algo o mais aproximado possível, dentro do nosso próprio (e pobre) léxico.
Quando meu amigo mencionou o sorriso de sua quase-amada, lembrei imediatamente de um texto de Richard Brautigan que havia lido semanas atrás: "I was trying to describe you to someone". O narrador, que encontra dificuldades em descrever uma garota (possivelmente amável), opta por retratá-la como um filme que havia visto quando criança sobre quando a eletricidade começa a chegar no interior.
Antes, os fazendeiros tinham que usar lanternas para enxergar à noite, costurar e ler, não tinham eletrodomésticos, não podiam ouvir rádio. Nas palavras dele, o filme tinha um tom heróico e representava a felicidade como a chegada de um jovem deus grego. Numa espécie de antes e depois, no qual o antes é um cenário sombrio e difícil, o depois trazia a imagem de um fazendeiro ordenhando as vacas sob a luz da lâmpada nas primeiras manhãs negras de inverno, uma família ouvindo rádio e se divertindo, agora tinham uma torradeira e luzes brilhantes pra costurar vestido e ler o jornal. “E é assim que você me parece.”, diz o narrador ao concluir a história.
“A linguagem nada mais tem a ver com o sujeito: é um objeto que nos leva e que pode nos perder; tem um valor para além de nossos valores. Podemos nos perder numa tempestade ou num pântano de palavras: é a retórica tornada matéria”.
Maurice Blanchot – A parte do fogo
O entendimento de que a luz é composta de partículas é algo recente. Essa descoberta nos foi apresentada no I Congresso de Solvay, onde o jovem Einstein expôs um conceito ainda provisório denominado “quanta”, no qual descrevia a luz como pequenas bolsas de energia, teoria essa que iria contra, nas palavras do próprio, “as consequências experimentalmente verificadas da teoria ondulatória”. Nem mesmo Einstein estava muito feliz com os contornos que essa pesquisa estava tomando, mas o cientista acreditava na necessidade de uma teoria que desse conta dos dois aspectos da luz: onda e partícula. Mesmo resistente, ele seguiu em frente.
Para mim, a natureza da linguagem desvela um problema semelhante. Imaginem que a linguagem seja como a luz, um holofote dirigido às coisas do mundo. Nós e tudo à nossa volta existe à luz da linguagem. Ou seja, o que está fora do holofote é completamente desconhecido pra nós. Agora imaginem que essa emissão de luz forme uma película sobre as coisas, invisível aos olhos. Essa cobertura, composta por ínfimas partículas, é constante e sólida na maior parte do tempo, mas pode sofrer eventuais fissuras que logo são recobertas pela mesma película, como uma medida de correção de falhas. Tal qual Einstein, minha própria teoria não me deixa muito segura. Mas seguirei nela — e peço que vocês sigam também, pois algumas coisas na vida precisam de um salto de fé.
A luz da linguagem me cobre como uma música
Vocês podem até pensar que sou maluca, mas ao menos não sou maluca sozinha. Em "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana", o jovem Benjamin descreve o comportamento da linguagem se valendo do mito da queda, o qual narra que Deus deu a Adão a tarefa de dar nome a todos os seres e a todas as coisas. Adão, porém, não sairia inventando nada da própria cabeça. No paraíso, a natureza e os homens compartilhavam uma única essência (Deus), de forma que cada coisa emanava o Verbo. Seu nome, o nome que Adão enunciava, seria, portanto, a tradução dessa essência em linguagem.
Porém, com a queda, o homem deixa de ter acesso à essência e isso causou uma fragmentação irretocável na linguagem humana, que deixa de traduzir a essência divina das coisas. Nas palavras de Benjamin, a natureza se emudece, pois os homens não mais podiam ouvir a emanação do Verbo divino.
Esta luz que eu descrevi como um holofote e uma película é a nossa linguagem, a linguagem dos homens que caíram do paraíso. Somos seres da linguagem não por desejo ou engenho próprio, mas por uma maldição, a mesma que nos separou da natureza e dos demais seres. Por isso, talvez, sejamos tão diferentes dos demais viventes, como uma amiga minha nunca se cansa de nos lembrar, ao se deparar com a devastação que provocamos sem cessar no planeta que é a nossa única casa.
Se a linguagem paradisíaca partia de uma emanação, a linguagem da queda, pelo contrário, esconde e recobre. Nossa maldição funciona assim: tudo que está sob o holofote da nossa linguagem existe, inclusive nós mesmos. Tudo que está fora também existe, mas para nós é como se não existisse. Tudo que está recoberto sob a película da linguagem e que, portanto, é traduzível em palavras humanas — ou seja, tem nome — existe. Entretanto, mesmo o que está coberto pode sofrer fissuras.
Tanto as fissuras quanto um eventual encontro com o que está fora dos holofotes constituem eventos extremamente traumáticos para nós, que chamamos de “indizível”. O "indizível" é algo que existe, mas não tem nome, não tem linguagem, portanto não conseguimos enunciar. Mesmo nas coisas conhecidas pode brotar, do nada, o indizível, exposto por alguma fissura. A essa experiência damos o nome de unheimlich.
Para que as palavras não bastem, é preciso alguma morte no coração
São diversas as experiências que podem romper provisoriamente essa película e nos causar uma sensação de espanto tão conhecida que até ganhou esse nome bonito, cuja raiz vem da palavra heim (segredo). Uma delas é descrita por Anne Ernaux em "A vergonha".
O livro começa com uma tentativa de descrever a cena na qual a narradora, quando criança, presencia uma tentativa do pai de assassinar a mãe. Ao longo das páginas, ela tenta reconstituir o mundo linguístico que a cercava para entender o que naquela cena era tão desconcertante, traumático, sem lugar: inenarrável. Ernaux compreende que somos seres linguísticos e que tudo que está fora da linguagem nos escapa. Não à toa, a epígrafe do livro consiste numa citação de Paul Auster, retirada de "A invenção da solidão":
“A linguagem não é a verdade. Ela é a nossa forma de existir no universo”
A tentativa de Ernaux de narrar em palavras o evento tem por objetivo “chacoalhar essa cena, há tantos anos congelada, para arrancar de dentro de mim seu caráter sagrado de ícone”. Sua principal hipótese é de que justamente a cena a leva a escrever, estando presente no fundo de todos seus livros. Mas para além da narrativa do episódio fatídico que abre o livro, e que só traria em si o fato bruto, Ernaux tenta reconstruir o léxico de seus 12 anos, para assim “dissolver a cena indizível (...) na generalidade das leis e da linguagem”. Tal experimento acaba por provar que o fato insólito da tentativa de assassinato realmente não tinha lugar na linguagem e consistia, portanto, uma fissura.
O corpo se lembra de um amor como acender a lâmpada
Mas não são só experiências negativas que causam esse rompimento fugaz no nosso lençol linguístico — debaixo do qual se escondem em cabaninhas as crianças que um dia fomos, ainda um pouco alheias aos fundamentos da linguagem. A experiência amorosa é uma grande promotora de terremotos e fissuras, e é provavelmente por isso que temos tanto medo e tanto desejo de que nos ocorra o amor. Talvez também por isso, sejamos tão austeros e cuidadosos em sua nomeação: ainda é cedo? Será mesmo amor? Será que estou pronto pra amar? Entre outras infinitas desculpas que visam nos afastar dessa experiência assombrosa.
Não vou me alongar em exemplos literários, que são inúmeros. Mais honesto de minha parte seria tentar reconstituir, como Ernaux, a cena de uma viagem que fiz a Ouro Preto com um dos meus primeiros namorados. Nessa época, estávamos apenas nos conhecendo e éramos muito jovens. Acho curioso que eu, que sou conhecida pela memória fraca, consiga descrever com riqueza de detalhes coisas que aconteceram lá.
Lembro de vê-lo na sacada da casa em que nos hospedamos, trajando uma camiseta lilás que mais parecia um pijama, com padrões de pequenos triângulos e quadrados que se intercalavam como num jogo de tabuleiro. Lembro de, sentados num café, colecionarmos fatos de pessoas que tínhamos em comum, mas que eram desconhecidos para um ou para outro - e a experiência surpreendente de ver um mesmo objeto por outro ângulo (que é também a base de toda boa fofoca). Lembro de ficar muito bêbada tomando cerveja com licor de menta, numa época na qual eu nem sequer sabia beber. E de ele me levar para um terreno alto e abandonado, onde conseguíamos ver todas as igrejas iluminadas à noite, e ali me dar o primeiro beijo.
Lembro do primeiro filme que vimos juntos, "Serras da Desordem". Ele achou graça do descontentamento de Carapiru ao ser capturado, detestando usar sapatos e repetindo com frequência a mesma frase: "eu tô com sono". Meu ex-namorado era, sem dúvida, um ser da linguagem. Costumava pegar uma citação e a repetir à exaustão: primeiro, através do sequestro do contexto, para fins de humor. Depois, uma vez deslocada para sempre da origem, ele incorporava-a ao nosso léxico, ao nosso mundo. Frases que pescamos em Ouro Preto repetimos ao longo de muitos e muitos anos, de forma que sempre se podia voltar àquela viagem, que havia se tornado o nosso mito da origem.
Porém, minhas lembranças são também permeadas por imagens não muito alegres. Lembro de atravessar uma ponte e ter vontade de segurar sua mão. Olhei para o lado e havia uma pequena escada num nível abaixo, que dava para uma antiga senzala. E senti medo.
Lembro também de estarmos sentados nos fundos de uma igreja. Eu tinha sua cabeça deitada em meu colo e começava a reparar detalhes do seu cabelo, rosto, algumas manchas de sol, pintas no pescoço. Olhei tudo aquilo como quem olha uma constelação desconhecida e tive certeza de que, mesmo se um dia namorássemos ou nos casássemos, ele nunca seria algo familiar pra mim. Acho que foi ali pela primeira vez que senti vontade de tomar posse de uma pessoa, assim como ele tomava posse de falas alheias.
Essa espectral textura da obscuridade
Sempre me disseram que ele era uma pessoa muito palavrosa e provavelmente a construção desse léxico que ajudou a formar nosso mundo em comum, o mundo que habitamos por muitos anos, era uma forma de cobrir fissuras. Por muito tempo, pensei que fosse eu a causá-las, pois, ao contrário dela, falava pouco e era taciturna. Em vez de cobrir com palavras, fotografei as cenas que me causaram temor e olhei para elas por longos anos, fitando a escuridão, as coisas que não tem nome pra nós e são, portanto, incógnitas.
Bem, não era eu a causadora das fissuras — quem dera tivesse esse poder. Eu apenas as acompanhava, pois suspeito que esse desvio, esse se perder no caminho, seja algo como a matéria do amor. O léxico, a descrição do ser amado, as fábulas, tudo isso é uma tentativa honesta, porém falha, de tradução do intraduzível: o salto de fé necessário para adentrarmos em qualquer novo relacionamento amoroso.
Nem naquele tempo, em que eu era tão menina, nem hoje, saberia descrever com recursos, metáforas e figuras de linguagem how you look to me, e muito menos achar as palavras certas (mágicas!) que vão nos fazer sentir menos medo. Abraço essa falha que não é só minha, mas da própria linguagem, e encerro esse verbete com uma última citação* de Alejandra Pizarnik:
O que estou dizendo? Está escuro e quero entrar.
Não sei mais o que dizer. (Não quero dizer, quero
entrar)
*Os subtítulos empregados ao longo do verbete foram retirados do livro "O Inferno Musical".
O Abecedário é uma newsletter mensal. Cada ensaio aborda livremente o significado que uma palavra tem para mim, como no abecedário de Gilles Deleuze, porém com bem menos maestria. Os verbetes serão publicados fora de sequência, a meu bel prazer. Se você pensou em algum filme, livro ou evento relacionado a "Linguagem" ao ler esse ensaio, não deixe de me contar em: carolinamitrova@gmail.com